Acesso às mensagens de celular e o valor da privacidade

Duas ocorrências de bloqueios ao Whatsapp, em 2016, foram emblemáticas para a discussão sobre o acesso às mensagens de celular e o valor da privacidade. Naquela época, por decisão judicial, o aplicativo parou de funcionar em todo o Brasil depois que a empresa não atendeu aos pedidos de informações feitos por uma juíza do Rio de Janeiro e por um juiz do Sergipe. Ambos haviam solicitado acesso ao conteúdo de conversas de usuários que ajudariam em uma investigação criminal mas, nos dois casos, a empresa alegou que era impossível verificar as conversas devido ao sistema de criptografia usado pelo aplicativo.

O conflito entre o interesse das operadoras de serviços de mensagens, como por exemplo o Whatsapp, em resguardar a privacidade dos usuários e a preocupação de magistrados em solucionar processos criminais chegou ao Supremo Tribunal Federal. Duas ações que ainda aguardam julgamento na Corte (ADPF 403 e ADI 5527) questionam os dispositivos legais que dão suporte jurídico à concessão de ordens judiciais para o fornecimento de conteúdo de comunicações privadas. O assunto foi discutido também em uma audiência pública promovida pelo STF especialmente para tratar deste tema, em 2017.

A principal lei questionada nestes processos é o chamado Marco Civil da Internet, aprovado em 2014 e que prevê o princípio da privacidade na web, ou seja, a garantia de inviolabilidade das comunicações dos usuários. Ele garante que as empresas nacionais e estrangeiras que operam no país têm o dever de sigilo das informações dos usuários, mas prevê a quebra desta garantia, no artigo 10: “o  conteúdo  das  comunicações   privadas   somente   poderá   ser disponibilizado mediante ordem judicial”.

Para tornar possível o acesso ao conteúdo das mensagens, Fabio Maia explica que as empresas teriam que criar “brechas” nos sistemas de segurança capazes de garantir acessos eventuais por autoridades. Para ele, porém, este seria um erro. “Um sistema de criptografia é como uma sala sem portas. Ao criar exceções de acesso, é como se fossem colocadas, nesta sala, portas com travas que só uma decisão judicial seria capaz de abrir. Mas se há uma trava, existe o risco de que ela seja arrombada por pessoas que podem não ter boas intenções com o uso das informações”, opina.

Para o juiz Luís Felipe Canever a eficácia de medidas que obriguem as empresas a oferecer alternativas de acesso ao conteúdo das mensagens é questionável porque vai gerar a migração dos usuários para outros sistemas, mais seguros. “É um jogo de gato e rato. Até poucos anos atrás, conseguíamos muitas provas por meio da interceptação telefônica, até que os criminosos perceberam isso, pararam de falar no telefone e migraram para sistemas mais seguros. Tornar o whatsapp vulnerável, por exemplo, vai forçar a mudança para outros sistemas”, conclui.

 

Mudanças previstas

A interceptação de mensagens virtuais é um dos temas discutidos  no chamado Pacote Anticrime, que tramita na Câmara dos Deputados. A proposta surgiu a partir de três diferentes iniciativas: dois projetos de Lei apresentados por comissões de juristas, reunidos no PL 10372/2018, e o projeto encaminhado pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro (PL 882/19). O documento apresentado por Moro prevê uma mudança na Lei n.º 9.296/1996, que trata de interceptações telefônicas, para incluir a possibilidade de “interceptação de comunicações em sistemas de informática e telemática” por qualquer meio tecnológico disponível. O texto pretende também “incluir a apreensão do conteúdo de mensagens e arquivos eletrônicos já armazenado em caixas postais eletrônicas”.

Também o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, elaborado pelo Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias (CNPCP), sugere a possibilidade de “apreensão do conteúdo de mensagens e arquivos armazenados em caixas postais eletrônicas”, conforme previsto no projeto de lei do Pacote Anticrime. O juiz Márcio Schiefler Fontes, integrante do Conselho e presidente da comissão que elaborou o Plano, lembra que esse é um debate mundial e acredita na construção de alternativas para resolver o atrito entre o acesso aos dados e o direito à privacidade. “Não é um assunto que será resolvido de forma simples, mas é fato que precisamos de definições mais claras na legislação brasileira”, aponta.