Especialista em prevenção ao suicídio destaca necessidade de falar sobre o assunto

“Todo mundo conhece alguém que tentou suicídio, mas ninguém fala sobre isso”. A afirmação é do médico psiquiatra Humberto Corrêa da Silva Filho, um dos maiores especialistas brasileiros em estudos de prevenção ao suicídio em entrevista exclusiva que concedeu para a AMC.

Humberto Corrêa da Silva Filho é professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em Farmacologia, doutor Ciências Biológicas e pós-doutor em Genética Molecular e está à frente das principais instituições que atuam na conscientização sobre suicídio e doenças mentais. É presidente da Associação Brasileira de Estudos de Prevenção ao Suicídio; da Associação Mineira de Psiquiatria e da Associação de Suicidologia da América Latina e Caribe (ASULAC).

Na entrevista a seguir, o médico fala sobre aspectos culturais e biológicos ligados ao suicídio e aponta para a necessidade de falar abertamente sobre o assunto.

 

O suicídio muitas vezes é relacionado com problemas como estresse, ansiedade ou depressão, por exemplo. Podemos considerar que ele é um mal da modernidade?

Nós temos evidências de suicídio desde que o ser humano existe. Inclusive pela forma como determinadas múmias, determinados corpos, foram encontrados mesmo antes do advento da linguagem. Então o suicídio acompanha o ser humano desde que ele existe.

O importante são as questões culturais em relação ao suicídio. Cada cultura ao longo do tempo vai tratar o suicídio de uma forma diferente. Às vezes de uma forma moralmente neutra, como em determinadas culturas onde o suicídio era admitido ao menos em certas circunstâncias. Outras culturas, como a nossa, reprimem moralmente o suicídio. Há um pavor da sociedade como um todo e as pessoas têm muita dificuldade de falar sobre isso. Então é um tabu histórico, religioso, é para muito considerado o maior pecado de todos.

O que este tabu tem a ver com questões religiosas?

Até pouco tempo atrás, por exemplo, entre os cristãos, era proibido enterrar um suicida no cemitério, o suicida não tinha direito aos atos fúnebres  e quem tentasse o suicídio era excomungado. Isso durante séculos foi impregnando na cabeça das pessoas e o suicídio passou a ser considerado não só um grande pecado, mas o maior pecado de todos, uma grande vergonha.

Em que medida o estigma é prejudicial?

O próprio tabu contribui para que o suicídio aconteça, porque nós temos como prevenir tanto em nível de saúde pública como em nível individual. Para que isso aconteça nós temos que falar sobre o assunto, incentivar as pessoas a procurar ajuda, falar que é possível prevenir. Uma provocação que sempre faço é a seguinte: todo mundo conhece alguém que tentou suicídio mas ninguém fala sobre isso. As pessoas têm dificuldade em discutir esse assunto da forma que deve discutir, que é: esse é um assunto de saúde pública e é possível prevenir o suicídio.

É comum certo julgamento moral da pessoa que comete ou tenta suicídio, especialmente se ela é um profissional bem sucedido ou tem boas condições financeiras, por exemplo. Existe relação entre sucesso profissional e pessoal com tendência suicida?

O suicídio é absolutamente democrático, existe em todas as classes sociais, em todos os níveis culturais e econômicos. Ele não poupa classe social nem nível econômico porque um dos principais motivos do suicídio é a doença mental, sendo a depressão em primeiro lugar.  E a depressão se distribui de forma igualitária na sociedade. Não podemos dizer que uma pessoa está protegida de um suicídio porque é bem sucedida, está bem financeiramente e tem uma grande bagagem cultural, porque não está. O suicídio é um fenômeno humano que independe de classe social.

Quando têm conhecimento de um caso de suicídio, as pessoas comumente tentam encontrar uma explicação – um motivo que tenha levado a essa decisão. É possível avaliar um suicídio dessa forma?

Existe uma tendência natural das pessoas de, diante de um suicídio, tentar especular sobre os motivos de terem levado aquela pessoa a se matar. Eu sempre digo que isso é um trabalho para o especialista. O suicídio é complexo, é multi fatorial, são inúmeras causas que vão juntas contribuir para o suicídio de um determinado indivíduo.

Quais são os fatores de risco?

Em termos estatísticos, sabemos que homens se matam mais do que mulheres, apesar das mulheres fazerem mais tentativas de suicídio. Os homens se suicidam três ou quatro vezes mais que as mulheres. Sobre faixa etária, principalmente o adolescente e o idoso são os dois grupos de maior risco. Outro fator é a doença mental, a depressão em primeiro lugar. Abuso de álcool e outras substâncias em segundo lugar. Ter tentado o suicídio alguma vez na vida também aumenta o risco, ou seja, quem tentou se matar alguma vez tem mais chances de tentar novamente. Outra coisa muito importante é a história familiar. Em parte existem fatores biológicos e genéticos também ligados ao suicídio, então ter alguém na família que tenha tentado ou que tenha morrido por suicídio também é um fator de risco.

A característica do trabalho dos magistrados – lidar constantemente com problemas de outras pessoas e muitas vezes observar de perto casos que expõem as piores atitudes do ser humano – pode ser considerada também um fator de risco ou um sinal de alerta para a saúde mental destes profissionais?

Qualquer atividade estressora aumenta o risco de suicídio, mas não existem informações que apontem que os magistrados se suicidem mais do que a população geral. Temos alguns grupos de riscos bem conhecidos, por exemplo militares e médicos se suicidam mais que a população geral, mas não temos informações sobre os magistrados. Do ponto de vista psicossocial, o grande risco é estar passando por um problema estressor grave, como separação conjugal, desemprego e principalmente aqueles fatores considerados mais humilhantes como ser preso, por exemplo. Um fator estressante recente pode funcionar como gatilho para o suicídio.

Quais são os sinais de alerta – comportamentos ou comentários que devem ser observados com atenção por colegas e familiares?

Quase 100% dos suicidas têm uma doença mental e a depressão é a mais frequente. Então a pessoa tem uma mudança de comportamento, passa a ficar mais isolada, começa a ter uma baixa no desempenho seja escolar seja no trabalho, começa a expressar ideias negativas do tipo “eu estou desanimado” ou “eu não tenho mais vontade de viver”. Temos que ficar alerta a essas mudanças de comportamento, a essas falas que provavelmente indicam que estamos diante de alguém em um processo depressivo que precisa de ajuda.

O que se deve fazer para ajudar essas pessoas, quando se percebe esses sinais?

Primeiro, estar disposto a ouvir esta pessoa, acolher e ter disposição emocional para ajudar ou procurar ajuda. Frequentemente a pessoa está em um processo depressivo tão grave que ela não tem iniciativa nem ânimo para procurar ajuda, então alguém no trabalho, um colega, um amigo tem que pegar essa pessoa pela mão e levar para um profissional da saúde.

O quadro suicida envolve sempre um desajuste químico que pode ser tratado com remédios?

Sim, todas as doenças mentais têm um substrato biológico e pelo menos na maioria delas nós vamos precisar usar um medicamento. Frequentemente usamos um medicamento mais uma psicoterapia e, às vezes, outras abordagens juntas, como terapia com a família dependendo da situação. Mas o usual, de forma genérica, é sempre o medicamento e uma psicoterapia.

Você acompanha diversas experiências e iniciativas de prevenção. O que é possível fazer enquanto política institucional para prevenir o suicídio entre magistrados e servidores do Poder Judiciário?

Cada instituição pode estabelecer modelos de prevenção de acordo com as suas características. Entre os militares, por exemplo, é muito útil afastar do trabalho a pessoa que está no processo depressivo. Entre os magistrados é necessário estudar qual a melhor abordagem nestes casos.

Eu acho que principal é, pouco a pouco, eliminar o tabu que cerca este tema. O tabu existe em relação à doença mental em si e ao próprio suicídio. Convidar profissionais para falar deste assunto entre os magistrados e aos poucos educar e esclarecer sobre o tema. A própria divulgação dessa entrevista já é um primeiro passo.