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Como nasce uma nova família pelos laços da adoção 

A história de um casal que desejava adotar se cruza com outra, de três irmãs que esperavam, há anos, pela felicidade de um novo lar.

*Os nomes das personagens que aparecem nesta reportagem são fictícios para garantir a privacidade da família entrevistada.

Em 2015 começavam duas diferentes histórias que, seis anos depois, formariam uma nova família. Naquele ano, em Itajaí, no litoral catarinense, o casal Flávia e Juliana tomou a importante decisão de ter filhos por meio de um processo de adoção. Elas procuraram, então, a ajuda do Poder Judiciário, na comarca de Itajaí, para entrar com o processo de habilitação – primeiro passo para quem deseja adotar.  

Nesta etapa elas passaram por diversas entrevistas para que as assistentes sociais forenses pudessem verificar se a casa e a rotina do casal eram adequadas para receber uma criança. Flávia e Juliana também apresentaram uma série de documentos. Com tudo aprovado, o Juiz proferiu uma sentença habilitando o casal para entrar na fila de espera da adoção.  

Neste momento, Flávia e Juliana imaginavam como seria e onde estaria a criança que viria a fazer parte da família. O que elas não sabiam é que naquele mesmo ano entravam no sistema de proteção três irmãs que, seis anos depois, tornariam-se suas filhas. 

Hoje, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Santa Catarina tem 2.810 pretendentes habilitados aguardando na fila de adoção. A maior parte está interessada em adotar crianças menores de cinco anos, sem irmãos e sem doenças pré-existentes.

Nas casas de acolhimento do estado, 180 crianças e adolescentes aguardam por uma nova família. A maior parte tem um perfil diferente do desejado pelos adotantes: são maiores de 10 anos, integram grupos de irmãos ou possuem algum tipo de problema de saúde. Essa realidade se confirma na cidade de Blumenau, por exemplo, onde há 17 aptos à adoção, sendo 16 deles adolescentes.

A segunda parte dessa história aconteceu na Grande Florianópolis, também em 2015. As irmãs Fernanda, Amanda e Paula, então com 2, 4 e 6 anos, foram encaminhadas para uma casa de acolhimento após denúncia de que a mãe biológica era usuária de drogas e, por esse motivo, não conseguia cuidar das filhas. 

Com a intervenção do Poder Judiciário, as meninas foram encaminhadas para uma casa de acolhimento enquanto a mãe seguia tratamentos médicos. Apesar de eventual melhora, o cenário de vício e negligência se repetia. A família chegou a ser acolhida por uma tia que tinha 11 filhos e, mesmo assim, a situação não foi resolvida. As irmãs passaram outras três vezes por medidas de proteção do Estado sem que fosse possível, para a mãe, uma reestruturação que a tornasse capaz de manter o poder familiar.  

Depois de quatro anos de tentativas de organização e manutenção da família, a mãe sofreu um processo de destituição do poder familiar. Foi a partir deste momento que as irmãs, agora já com 6, 8 e 10 anos, começaram a aguardar uma adoção.   

Não foi fácil encontrar uma nova família para Fernanda, Amanda e Paula porque, em casos de grupos de irmãos, o Poder Judiciário prioriza que eles sejam mantidos na mesma família, mas pretendentes com tal disposição são raros. Por isso, o encontro com as futuras mães – o casal Flávia e Juliana – ocorreria depois de dois anos de espera na casa de acolhimento. 

Hoje mais de 30 mil crianças e adolescentes estão acolhidos em todo o Brasil, mas a maior parte desses acolhimentos é temporário. Dados do CNJ mostram que, nos últimos dois anos, cerca de 31 mil crianças e adolescentes passaram pela situação temporária de proteção estatal e acabaram retornando ao núcleo familiar.

Foi em 2021 que as histórias dessas cinco mulheres – o casal Flávia e Juliana e as irmãs Fernanda, Amanda e Paula – acabaram se cruzando. Durante um dos cursos regularmente exigidos pelo Poder Judiciário para pretendentes à adoção, Juliana e Flávia conheceram a plataforma online “Busca Ativa”, onde interessados podem pesquisar e visualizar as crianças que estão acolhidas no momento.  

Essa plataforma só pode ser acessada por habilitados no Sistema Nacional de Adoção do Conselho Nacional de Justiça. “Começamos a pesquisar e vimos esse grupo de irmãs. Com medo de clicar para saber mais e já assumir um compromisso, procurei primeiro me informar melhor sobre a plataforma”, explica Juliana. Ao saber que clicando para assistir ao vídeo das irmãs elas estariam apenas demonstrando interesse em obter mais informações, o casal acessou novamente a plataforma, viu fotos das irmãs e assistiu um vídeo de Fernanda, Amanda e Paula falando sobre as brincadeiras preferidas e sobre que tipo de família elas queriam ter.  

A imagem das irmãs unidas causou um impacto imprevisto no casal.  “Semanas depois de ver esse vídeo, confessei para a Flávia que não conseguia esquecer as meninas e que, apesar de não ser exatamente o perfil que a gente procurava, precisávamos conhecê-las”, relata Juliana. Na época, o casal estava disposto a adotar, no máximo, dois irmãos na faixa etária de 6 a 10 anos.  

Sem saber como seria o primeiro contato e com medo de causar falsas esperanças nas irmãs, o casal decidiu se voluntariar para atuar na casa de acolhimento de Biguaçu, onde puderam ter contato com as meninas pela primeira vez. “Não é como filme, com amor à primeira vista. Essa relação foi sendo construída aos poucos”, explica Juliana.  

Em janeiro de 2022, o pedido do casal para adoção das três irmãs foi encaminhado ao Juiz da comarca. Com o processo em andamento, as visitas aumentaram e elas puderam levar as irmãs para conhecer Itajaí pela primeira vez. Todo período de aproximação foi acompanhado por assistentes sociais e psicólogas da casa de acolhimento, para garantir a segurança e o bem-estar das crianças envolvidas.  

Após observadas todas as exigências legais e vencidas as etapas do processo, o Juiz proferiu a decisão em favor da adoção e as meninas foram para a nova casa, em Itajaí. Começou, então, uma nova fase no processo de adoção, chamada de “estágio de convivência”, quando se consolidam os laços entre mães e filhas para a formação da nova família. Todo o processo é acompanhado de perto pela equipe forense, com visitas regulares de assistentes sociais e psicólogas para garantir a melhor adaptação possível no novo lar. Atualmente, em Santa Catarina, 300 crianças e adolescentes estão vivendo este mesmo processo de adoção.  

Em agosto deste ano a história de Flávia, Juliana, Fernanda, Amanda e Paula terminou com um novo nascimento civil: a emissão da nova certidão de nascimento de cada filha, agora com o nome das mães oficialmente. “Em todo o processo a gente pensava se daria conta, afinal, erámos duas e agora somos cinco. Três filhas para educar, cuidar, dar amor e atenção. Mas, apesar de todos os desafios diários, desde ajudar na escola ou até mesmo educar sobre temas mais difíceis, vale a pena”, explica Flávia.  

“É quando estamos juntas no final de semana, cozinhando, vendo um filme e gargalhando que sei que tudo isso deu certo. Ouço delas que somos uma família legal e isso faz valer a pena cada desafio que encaramos”, relata.

Em todos os casos de acolhimento, o objetivo do Poder Judiciário é garantir a segurança e a dignidade das crianças e adolescentes, seja com o retorno ao núcleo familiar ou com o encaminhamento para um processo de adoção. A prioridade é garantir que os direitos à vida, à saúde, à educação e ao lazer sejam preservados na garantia de um futuro digno para os menores.   

Os processos de destituição do poder familiar passam por um longo caminho de análises no Poder Judiciário e a decisão do Magistrado sobre manter ou não o poder dos pais sob os filhos sempre leva em conta diversos fatores. “Todo o trabalho do sistema de garantias dos direitos da criança e do adolescente, incluídos aí o Juiz, promotor de justiça, assistente social e psicólogo forenses e do serviço de acolhimento, tem que ser direcionado à reintegração familiar, em primeiro lugar”, explica a Juíza Simone Faria Locks, que atuou por sete anos na Vara da Família, Infância e Juventude de Blumenau. 

“A decisão de tirar uma criança da família não é fácil, porque apesar de todos os problemas, em muitos casos ainda há vínculos. Por outro lado, quando necessário, destituir o poder familiar é uma decisão de suma importância porque é somente assim que conseguimos mudar aquela situação de risco e de sofrimento”, explica a Juíza Surami Juliana dos Santos Heerdt, que atua na Vara da Infância e Juventude em Chapecó. Hoje, cerca de 1,5 mil estão temporariamente em casas de acolhimento de Santa Catarina. 

Para entender cada etapa do longo caminho que pode levar uma criança a um processo de adoção, siga no GUIA AMC: 

Contamos com a ajuda de cinco Magistrados catarinenses com larga experiência na área da infância e juventude para explicar todos os detalhes envolvidos nos julgamentos: Raphael Mendes Barbosa (Rio do Sul), Surami Juliana dos Santos Heerdt (Chapecó), Simone Faria Locks (Blumenau), Fernando Machado Carboni (Itajaí) e Liliane Midori Yshiba Michels (São Bento do Sul).