Memorial

Processo Administrativo de Controle n. 488

E. Relator Conselheiro Milton Nobre (em sucessão Min. Rui Stoco)

 

Finalização de julgamento pautado para dia 20/04/10 (número 08 da pauta)

 

 

I – OBJETO DO PROCESSO E OBJETO DESTE MEMORIAL

 

 

  1. Eminentes Conselheiros: o presente memorial tem por fim discutir o conteúdo jurídico e as hipóteses justificadores de concessibilidade do auxílio-moradia aos Magistrados catarinenses, tendo em conta a LOMAN (e a justa posição revelada pelo Min. Marco Aurélio do STF, em 10.09.09, nos autos de Mandado de Segurança 26794/MS) e a Constituição da República, esta a partir do seguinte bloco de constitucionalidade: a independência da magistratura (artigos 2º c/c 95, III e 99), o direito fundamental à moradia (art. 6º, caput) e o princípio geral da legalidade (e princípios setoriais da legalidade administrativa e da legalidade da despesa pública) (artigos 5º, II, 25, § 1º, 37, caput, 70, 84, IV).

 

  1. O objeto deste processo de controle é mais amplo – incluindo teto remuneratório e “parcela de irredutibilidade de representação” -, todavia, a Associação defendente se restringirá a argumentar apenas sob o enfoque do auxílio-moradia.

 

  1. Necessário para tanto verificarmos o voto vista proferido pelo e. Cons. Mairan Maia, que sumaria o voto condutor, do e. Cons. Rel. Rui Stoco, voto proferido na sessão de 12.05.09, na parte em que se ocupou da vantagem indenizatória de auxílio-moradia:

 

“VISTOS,

Trata-se de Procedimento de Controle Administrativo, instaurado em cumprimento à decisão do Plenário desse Colendo Conselho Nacional de Justiça, adotada na 6ª Sessão Extraordinária realizada no dia 06.03.2007, em face do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, objetivando a análise da legalidade do pagamento da denominada parcela de “irredutibilidade de representação” e do auxílio moradia pagos aos magistrados de Santa Catarina, por força do disposto na Lei Complementar Estadual nº. 367, de 07.12.06.

 

(…).

 

Destacou acertadamente o Conselheiro Relator a relevância da questão do pagamento do auxílio moradia, em face da necessidade da uniformização de seu pagamento para todos os magistrados: estaduais e federais.

 

Com efeito, diversas são as situações relativas ao pagamento do auxílio moradia nos vários Estados da Federação, como ilustram os PCAs 438 e 440 de relatoria do Conselheiro Altino Pedrozo dos Santos, o PCA nº 484, de relatoria do Conselheiro Jorge Maurique, e o PCA nº 486, de relatoria do Conselheiro José Adonis Callou.

 

Assim, seria de rigor a uniformização de sua disciplina, seja relativa às hipóteses que justificariam seu pagamento, ao período em que deva ser pago, bem como ao valor a pagar a título de auxílio moradia, de modo a proporcionar solução única a toda a magistratura.

 

No entanto, tratando-se de procedimento de controle administrativo, o controle da legalidade do ato exercido por esse Conselho, há de circunscrever-se ao caso concreto, ainda que, das discussões então decorrentes do debate instaurado e da decisão de seu julgamento, possam ser hauridos critérios e elementos para a edição de enunciado ou ato normativo pelo CNJ, com esteio no disposto no art. 103-B, 4º, I, da Constituição Federal.

 

Por esta razão, analiso exclusivamente os elementos fáticos e jurídicos pertinentes ao caso concreto ora em julgamento.

 

O pagamento do auxílio moradia insere-se entre as vantagens expressamente previstas pelo artigo 65, II, da LOMAN, Lei Complementar nº. 35/79, não se subordinando seu pagamento ao limite estabelecido como teto de vencimentos, em virtude da natureza indenizatória que a norma lhe confere, conforme expressamente ressalvado no art. 8º, I, b, da Resolução nº. 13/06 desse Conselho.

O pagamento do auxílio moradia aos Magistrados do Estado de Santa Catarina encontra seu fundamento normativo no art. 15, inciso I, “c” e § 1º, da Lei Complementar Estadual nº. 367, de 07.12.06, “verbis”:

 

“Art. 15. Além do subsídio, poderão ser outorgadas aos magistrados as seguintes vantagens:

 

I – de caráter indenizatório:

………………………………………………………………………………………………

c) auxílio-moradia

………………………………………………………………………………………………

§ 1º A aplicação das alíneas c e f do inciso I deste artigo não poderá exceder a dez por cento do respectivo subsídio.”

 

Em atenção à norma editada, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina passou a pagar o auxílio moradia, no percentual de até 10% do subsídio do Magistrado, aos magistrados em atividade que não habitam em residência oficial ou possuam imóvel próprio, na sede da circunscrição judiciária, observando-se, inclusive, o teto constitucional.

 

Como frisado no douto voto proferido pelo Relator, Conselheiro Rui Stoco: “Sua natureza indenizatória é incontestável. Serve para ‘ajudar’ na adversidade e naquilo que se mostra anormal e que refoge da capacidade e condição pessoal do magistrado. Devolve o que teve de despender, quando o faz para o exercício da atividade judicante. Aliás, encontra afinidade com a ajuda de custo para despesas de transporte e mudança (art. 65, I), que também é concedida desde que para o exercício da atividade profissional de julgar”.

 

Condiciona o e. Relator o pagamento do auxílio moradia à presença da necessidade de sua concessão para o exercício da função jurisdicional, ao interesse público, consubstanciado na presença das condições indispensáveis ao exercício da “judicatura com eficiência e garantia”.

 

Assim, em razão de consistir em instrumento destinado ao exercício da função jurisdicional, seria indevida sua concessão ao inativo, bem como àquele que habite residência própria, ou ocupe imóvel pertencente ao Poder Judiciário, ou posto à sua disposição, para o exercício da função pela municipalidade ou associação de classe. Esses aspectos são observados pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, como reflete a ata da sessão do Tribunal de 12 de dezembro de 2006, mencionada às fls. 307 dos autos.

 

Quanto ao conceito de “residência própria” para fins do pagamento do auxílio moradia, devem também ser compreendidos os imóveis objeto de compromisso particular de compra e venda, ainda não registrados em nome do compromitente comprador, ou pertencentes a integrantes do agrupamento familiar e destinados à residência da família, já que nessas situações não está configurada a necessidade do pagamento do auxílio moradia, esclarecendo-se, assim, a dúvida suscitada pelo Tribunal requerido às fls. 300 dos autos.

Ademais, o caráter indenizatório há de ser considerado quando da fixação de seu valor, já que por se destinar ao pagamento de aluguel de imóvel a ser habitado pelo magistrado, o montante pago a título de auxílio moradia deve ser o necessário e suficiente para o exclusivo pagamento da despesa. A fixação do auxílio moradia em até dez por cento do valor do subsídio permite sua adequação à realidade da região na qual exercida a atividade jurisdicional.

 

No caso concreto, o valor previsto pela Lei estadual é compatível com essa finalidade, não se revelando excessivo, encontrando-se, portanto, em conformidade com o princípio da razoabilidade.

 

A provisoriedade do pagamento do auxílio moradia é também ressaltada no voto do Conselheiro Relator, “verbis”:

 

“Não se pode deslembrar que essa ajuda, por força da dinâmica da carreira de juiz, é temporária, tem caráter eventual e, como verba de caráter indenizatório – que tem por vocação restituir despesa efetivamente feita com locação – não se confunde com a remuneração do cargo.

Significa, também, que há de ser concedida cum granum salis, estudando-se caso a caso, como já ressaltado e não a convertendo em benesse ou no benefício permanente ou, ainda, em fonte de lucro”.

 

Com efeito, a estrutura da carreira da Magistratura é escalonada, e, no âmbito estadual organizada em entrâncias, sendo natural a movimentação dos Magistrados de primeiro grau, ainda que em períodos indefinidos e variáveis de tempo. Assim, enquanto necessário, em função da movimentação na carreira, seja em virtude de promoção ou remoção, de rigor o pagamento do auxílio moradia por prazo razoável, uma vez presentes os demais pressupostos que justificam seu pagamento.

 

A LOMAN, em seu artigo 65, II, previa não ser devida a ajuda de custo, para moradia, nas capitais. Contudo, a referida exceção foi excluída de seu texto pela Lei Complementar nº 54, de 22.12.1986, sendo, portanto, também devida aos magistrados residentes nas capitais que atendam aos requisitos para seu recebimento.

 

Outrossim, em atenção ao princípio da transparência, o valor pago a título de auxílio moradia deve ser expressamente discriminado no contra-cheque do magistrado.

 

Ante todo o exposto, acompanho integralmente o voto proferido pelo eminente Conselheiro Relator e reconheço ser indevido o pagamento da denominada parcela de “irredutibilidade de representação”.

 

É o voto.

 

Brasília, 12 de maio de 2009.

 

Conselheiro MAIRAN GONÇALVES MAIA JÚNIOR

Relator”

 

  1. Da leitura deste r. voto se verificam as seguintes premissas:

 

  1. O auxílio-moradia só pode ser concedido temporariamente e em caráter indenizatório, sem sua limitação ao teto de vencimentos;

 

  1. O valor de até 10% do subsídio, fixado na lei catarinense, Lei Complementar nº. 367, de 07.12.06, é razoável e válido;

 

  1. Os magistrados que podem recebê-lo são aqueles que em razão da atividade judicante, pelo trânsito decorrente da promoção ou remoção, pagam aluguéis, e apenas para pagar aluguéis é que devem recebê-lo;

 

  1. Os magistrados que possuem residência própria na circunscrição judiciária, assim como aqueles que moram em residência do seu grupo familiar ou possuem contrato de compromisso de compra e venda, não fazem jus a tal auxílio;

 

  1. O auxílio moradia dever ser concedido de modo necessário e suficiente ao pagamento de aluguel.

 

  1. Como veremos adiante, as premissas c, d e e desse raciocínio, data máxima vênia, parecem não encontrar respaldo na LOMAN, na inteligência que se desenha no STF nos autos de mandado de segurança n. 26794/MS e na Constituição da República.

 

 

II – considerações sobre O Auxílio-moradia sob a ÓTICA refletida PELO MINISTRO MARCO AURÉLIO NOs autos do mandado de segurança n. 26794/MS-STF:

 

 

  1. No informativo do STF n. 558 foi resumida a posição tomada pelo Ministro Marco Aurélio, no que toca a exegese adequada a se fazer sobre o artigo 65, II, da LOMAN, relativamente ao conteúdo e extensão do auxílio-moradia:

MS 26794/MS, rel. Min. Marco Aurélio, 10.9.2009. (MS-26794) – Auxílio-Moradia de Magistrados Estaduais – 2

No mérito, o Min. Marco Aurélio concedeu, em parte, a segurança para afastar a exclusão do direito a magistrado que tiver residência própria e aos inativos e pensionistas cuja situação jurídica esteja sacramentada pela Corte de Contas estadual.

 

Relativamente ao auxílio-moradia, registrou cuidar-se de parcela que possui natureza indenizatória, não integrando o que percebido pelo magistrado, isso para efeito de aposentadoria, nem incidindo sobre ela tributos como o Imposto de Renda.

 

Esclareceu que interpretações teleológica e vernacular do art. 65, II, da LOMAN revelariam o caráter linear da parcela, não mais havendo a restrição às comarcas do interior, estranhas à capital (“Art. 65. Além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos magistrados, nos termos da lei, as seguintes vantagens: … II – ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do magistrado.”).

 

Aludiu que se constataria não estar o valor pago ligado ao fato de o magistrado possuir, ou não, residência própria, cabendo a satisfação, conforme disciplinado em lei, desde que não se colocasse à disposição do magistrado residência oficial.

 

Fora isso, enfatizou que seria distinguir situações onde o texto não o fez.

Tendo isso em conta, passou ao exame da Lei estadual 1.511/94, assinalando que esta poderia vir a ter a eficácia afastada, no campo administrativo, se conflitante com a LOMAN, no que ela se apresentaria harmônica com a Constituição.

 

(…).

 

Citando o art. 254 do Código de Organização Judiciária do Estado de Mato Grosso Sul, considerou que, sob o ângulo da definição do valor, o critério adotado seria razoável [“Art. 254. Os magistrados perceberão, mensalmente e a título de auxílio-moradia, vinte por cento (20%) sobre os vencimentos. § 1º O magistrado que residir em próprio do Estado, ou mantido por ele, não fará jus à ajuda de custo prevista neste artigo. § 2º É defeso a magistrado receber ajuda de custo para moradia, ou sua complementação, de qualquer outra fonte.”].

 

Expôs que o previsto na LOMAN teria sido parcialmente observado por aquele ente federal, porquanto a exclusão do direito à ajuda, tal como versado na lei em comento, apenas ocorreria caso o magistrado residisse em imóvel do Estado.

Desse modo, excluiu-se o benefício quando existente, na localidade, residência oficial e esta é colocada à disposição do magistrado (LOMAN, art. 65, II).

Frisou, ademais, não caber aplicação analógica da Lei 8.112/90, uma vez que a LOMAN, quando remete a disciplina do tema auxílio-moradia à lei, refere-se à legislação local, surgindo, na situação dos autos, conflito parcial do § 1º do art. 254 da Lei estadual 1.511/94 com a citada lei complementar.

 

  1. Em notícia veiculada no site do STF, na data de 10.09.09, há mais informações sobre o ocorrido nos autos do referido mandado de segurança, que guardam alta relevância paradigmática e jurisprudencial para estes autos de processo administrativo de controle:

 

“Pedido de vista suspende julgamento envolvendo auxílio-moradia de magistrados do Mato Grosso do Sul

Pedido de vista da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha interrompeu, nesta quinta-feira (10), o julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), do Mandado de Segurança (MS) 26794, com pedido de liminar, impetrado pela Associação dos Magistrados de Mato Grosso do Sul (AMAMSUL) relativamente ao Procedimento de Controle Administrativo (PCA) 484/2007, em curso no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determinou o corte imediato das parcelas de auxílio-moradia aos magistrados inativos e pensionistas do Judiciário daquele Estado.

O pedido de vista foi formulado quando o relator, ministro Marco Aurélio, já havia concedido parcialmente a segurança, por entender que o CNJ, órgão administrativo do Judiciário, não tem poder para legitimar ou não um ato do Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul (TC-MS), que é um órgão do Legislativo. Ele se referia aos casos de magistrados com aposentadoria já homologada pelo TC-MS. (…).

O ministro admitiu, também, que o corte do auxílio-moradia é legítimo quando um juiz rejeita a oferta de um imóvel oficial colocado à disposição dele. Nos demais casos, entretanto, acha que não deve ser feita distinção entre os juízes que pagam aluguel e os que economizam o dinheiro do auxílio-moradia para adquirir um imóvel próprio.

Ele lembrou também que, anteriormente a 1986, só os juízes lotados no interior tinham direito a auxílio-moradia, mas que, a partir daquele ano, a Lei Complementar nº 35, de 14.03.1979 (Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN) o estendeu também aos juízes lotados nas capitais.”

  1. As premissas defluentes da exegese do Ministro Marco Aurélio são as seguintes:

 

  1. O auxílio moradia tem caráter indenizatório, não incidindo sobre ele imposto de renda e descontos previdenciários;

 

  1. É razoável 20% sobre o valor do subsídio;

 

  1. Não se pode distinguir, tendo em conta o artigo 65, II, da LOMAN, entre aqueles magistrados que pagam aluguel e aqueles que economizam dinheiro para adquirir residência própria, pois a LOMAN só teria excluído do benefício o magistrado que mora em residência oficial (seja estatal, municipal ou associativa);

 

  1. Cabe a lei estadual definir as hipóteses materiais de concessão e cessação do recebimento do auxílio-moradia, respeitado o que dispuser a LOMAN no que toca ao universo subjetivo-funcional de magistrados atingidos, distinguindo-se apenas entre magistrados residentes em moradia oficial e magistrados não residentes nessas moradias, estando esses legitimados a receberem o benefício ou para pagamento de aluguel ou para economia para aquisição de casa própria.

 

  1. Essas duas últimas premissas revelam acirrado contraste entre o que se disse exegeticamente no STF (nos autos de MS 26794/MS, Rel. Marco Aurélio), máxima Corte Nacional e Corte Revisora dos atos deste Alto Conselho (artigo 102, I, r, da CF), e o que já foi dito nesses autos nos dois respeitáveis votos já proferidos.

 

  1. Os respeitáveis votos deste e. Conselho, podem ainda merecer reflexão crítica tendo em conta os valores constitucionais da independência da magistratura, do direito fundamental à moradia e do princípio da legalidade.

 

 

III – considerações sobre O AUXÍLIO-MORADIA como desdobramento infraconsticional concretizador do direito fundamental à moradia e da preservação da independência econômica e segurança jurídica da magistratura.

 

 

  1. Partimos da premissa de que o auxílio-moradia para magistrado definido na LOMAN e regrado em leis estaduais é desdobramento concretizador do direito fundamental à moradia estatuído no artigo 6º da Constituição da República.

 

  1. Embora tal direito, expressamente, tenha sido introduzido no catálogo de direitos fundamentais somente em 2000, por força da emenda constitucional n. 26, existem muitos doutrinadores que já o entendiam como direito fundamental implícito nas disposições constitucionais originárias de 1988[1]. Isso não só por força da narrativa constitucional, quanto por remissão aos tratados internacionais referendados pelo Brasil, que asseguravam, no plano interno, o direito à moradia. Isso é relevante para entendermos o processo de recepção da LOMAN em face da CF.

 

  1. A recepção da LOMAN pela Constituição de 1988 não apenas renovou seu fundamento de validade, mas impôs sua releitura a partir dos valores constitucionais positivados em 05.10.88 e das emendas constitucionais posteriores. Isso é uma decorrência da força normativa da Constituição, da força aplicativa e interpretativa que emana de seus direitos fundamentais e dos princípios constitucionais acolhidos pelo Constituinte[2].

 

  1. Embora o direito à moradia, como direito social fundamental seja quase sempre associado aos excluídos socialmente, aos sem-teto, aos sem-lar, ele pode e deve ser lido e interpretado como protetivo de posições jurídicas, de posição de vantagem (Canotilho) para qualquer pessoa humana, seja ela incluída ou não socialmente, ou seja, em qualquer estrato social da população brasileira é possível fazermos uma leitura em que o direito à moradia implique direito de defesa e/ou direito à prestações emanáveis do poder público: prestações legislativas, administrativas ou judiciárias para fazê-lo concreto, em situações concretas[3].

 

  1. Para o Juiz, mesmo integrante da classe dos incluídos socialmente, da classe média, o direito fundamental à moradia revela a sua faceta protetiva a reclamar prestações legislativas e materiais do poder público, especialmente no que toca a sua dimensão realizadora no plano prático, através do auxílio-moradia, que primeiro deve ser regrado pela lei (prestação legislativa) e depois prestado em espécie pela administração (prestação administrativo-financeira)[4].

 

  1. E isso é básico, tendo-se em conta o plano do “domínio normativo” e “programa normativo” do artigo 6º da CF. O primeiro, o “domínio”, nos remete à realidade fática (econômica, psicológica, social, institucional, funcional) sobre o qual incidirá a norma; o “programa” revela a extensão e o conteúdo do direito à moradia, a sua juridicidade, lida na sistematicidade da Constituição, e a sua interação com documentos internacionais e legislação infraconstitucional[5].

 

  1. O direito à moradia não se resume no residir, no ato físico de habitar residência. No estar na posse direta de um imóvel. Morar implica em viver em um abrigo, sob um teto onde se possa repousar, criar os filhos, cuidar da família; se possa descansar da labuta ou labutar no aconchego do lar; onde se possa refletir, estudar, se isolar para pensar e meditar, etc, etc. O direito à moradia exige  morada em local próprio, seguro, próximo do local de trabalho e que a família possa ter acesso à escola, saúde e segurança física e psíquica.

 

  1. A moradia de um Juiz, comparada a de um cidadão comum que não exerce as suas tarefas sociais e institucionais, precisa de mais segurança e comodidade. A maioria dos Juízes trabalha, depois do fórum e depois do expediente forense, em casa. Leva autos para casa. Utiliza dos utencílios de seu lar em prol de todos, da comunidade. Nem é necessário dizer que pela sua posição, pode e deve ser procurado em sua morada, sendo que sua morada pode ser alvo não só dos que lhe procuram no exercício de direitos e deveres, como aqueles que pretendem, fora da lei, exercer sobre sua pessoa, família ou patrimônio alguma violência… A morada do Juiz, assim como o seu direito à moradia, em face das peculiaridades da função judicante tem contornos dissemelhantes do cidadão comum.

 

  1. O Juiz, passando de comarca em comarca ao longo da vida, transita por inúmeras cidades. E em cada qual, como é próprio, reivindica, pelo aluguel ou aquisição, a sua morada. O ato de mudança de residência, a diversidade dos valores imobiliários e multifacetada configuração sócio-econômica e urbanística de cada nova cidade, fazem com que os dispêndios com moradia – os gastos no exercício legítimo de seu direito à moradia (condomínio, energia, telefone, alimentação, impostos, taxas de serviço, transporte escolar e laboral, etc) – sejam de monta a exigir, por provisão legislativa e administrativa, o auxílio-moradia.

 

  1. Não fosse assim deixaríamos o Magistrado enfraquecido economicamente. E sua fraqueza econômica abalaria ou anularia a sua independência judicante. A primeira Constituição a prever a irredutibilidade dos vencimentos da magistratura, a norte-americana (1787), o fez por que sabia que uma forma de anular o poder do Poder Judiciário, de anular o poder do Juiz, seria enfraquecer a vida financeira do Magistrado, fosse dado ao Poder Legislativo ou ao Poder Executivo ingerência redutora sobre seus vencimentos.

 

  1. Mas hoje o juiz não está sujeito a ser vítima apenas do poder político. Pode sê-lo também do poder econômico, ou de circunstâncias econômicas que dificultem sua paz, sua saúde, sua tranqüilidade e suas escolhas de moradia. Juiz que mora mal, que tem dificuldades com sua moradia, é juiz que não estará de todo aparatado para cumprir bem e eficazmente o seu ofício.

 

  1. Assim o interesse público, consubstanciado no direito fundamental à moradia do magistrado, imbricado com o princípio constitucional da independência da magistratura, ditam que o conteúdo e extensão do auxílio-moradia não pode ficar restrito ao pagamento de aluguel! Deve compreender outros gastos, como condomínio, energia, telefone, alimentação, impostos, taxas, etc. Gastos que compreendam a complexidade econômica, geográfica, sanitária e psicológica (etc) do processo que compreende o direito de morar, o direito à moradia. Não devendo receber restrições semelhantes as do parágrafo único, do artigo 3º, da Portaria n. 251, de 19.05.08, deste Alto Conselho.

 

  1. E o princípio da legalidade, como valor constitucional, vem nos dizer que cabe a lei definir os sujeitos do direito e as hipóteses materiais de seu exercício.

 

  1. O voto do Ministro Marco Aurélio dá-nos que a LOMAN estabeleceu os possíveis sujeitos atingidos, e que a lei local, a lei do Estado-Membro é que deve definir as hipóteses de percebimento, o percentual respectivo, os gastos a serem cobertos com o auxílio-moradia à realizabilidade do direito fundamental à moradia do magistrado.

 

  1. E isso também pela dimensão federativa e continental do País, no qual cabe a lei local disciplinar o Direito Administrativo regulador da concessibilidade do “auxílio-moradia”, como vantagem indenizatória e não remuneratória.

 

  1. A lei local legitima a despesa pública estadual. O Judiciário, administrativa e financeiramente, seus agentes, se submetem ao controle deste Alto Conselho. Mas este alto Conselho não pode ter ingerência sobre as decisões do legislador local que concretizam, legislativamente, o direito à moradia do magistrado através da fixação razoável e federativa do “auxílio-moradia”.

 

  1. O princípio da legalidade, assim, revela sua força normativa e hermenêutica para o caso ao indicar que precisamos respeitar o direito positivado na LOMAN à classe dos magistrados (e direitos interpretam-se ampliativamente, competências restritivamente…), sem restringi-lo para uma parcela de agentes que não sofreu restrição do legislador nacional (os juízes que tem residência própria na comarca!).

 

  1. De outra banda, o princípio da legalidade revela que é à lei local que cabe definir as hipóteses de concessibilidade do auxílio-moradia, respeitada a composição federativa e a competência estadual legislativa, assim como a independência normativa do Poder Legislativo estadual.

 

  1. Nessa seara, a interferência deste Alto Conselho pode não só ferir legítimos direitos outorgados pela Lei Nacional (LOMAN), como invadir a esfera de outro poder da República, de outra instância da Federação. Assim, data vênia, parece haver uma posição hermenêutica retrocessiva na exegese até agora descortinada nestes autos, não respeitadora do princípio da legalidade, do direito fundamental à moradia e da independência econômica da magistratura.

 

  1. A regulação do auxílio-moradia a ser feita por este eg. Conselho, referida obter dictum no voto do Conselheiro Mairan Maia, à custa do artigo 103-B, § 4º, I, da Constituição Federal, deverá levar em conta a complexidade do direito fundamental à moradia do magistrado estadual, respeitando-se à LOMAN, os valores constitucionais da legalidade, independência econômica da magistratura e a realidade federativa do auxílio-moradia que haverá de concretizar, local e subjetivamente, o direito fundamental à moradia de magistrado.

 

 

IV – O AUXÍLIO-MORADIA COMO DIREITO REGRADO E FRUÍDO HÁ MUITO NO ESTADO DE SANTA CATARINA PELA SUA MAGISTRATURA ESTADUAL

 

 

  1. Insta dizer que há muito o Estado de Santa Catarina editou a primeira lei regrando o auxílio-moradia. Vejamos o primeiro dispositivo estadual em cotejo com o dispositivo federal ainda vigente:

 

LEI COMPLEMENTAR FEDERAL Nº 35, DE 14 DE MARÇO DE 1979 (LOMAN)

 

Art. 65 – Além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos magistrados, nos termos da lei, as seguintes vantagens:

(…).

II – ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado. (Redação dada pela Lei nº 54, de 22.12.1986)

 

 

LEI ESTADUAL Nº 5.624, de 09 de novembro de 1979

Dispõe sobre a adaptação do Código de Divisão e Organização Judiciária do Estado de Santa Catarina à Lei Orgânica da Magistratura Nacional e dá outras providências.

 

Art. 283. Além dos vencimentos e das gratificações previstas na legislação federal os magistrados terão as seguintes vantagens:

(….)

 

§4º A lei poderá conceder a vantagem de ajuda de custo para moradia nas comarcas em que não houver residência oficial para juiz, exceto nas Capitais.

 

  1. Muitos outros diplomas legislativos densificaram o auxílio-moradia em solo catarinense após essa primeira regulação de 1979. Hoje vigora a norma referida e referendada, com precisão, no voto do Conselheiro Mairan Maia:

 

LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL Nº 367, de 07 de dezembro de 2006

 

Dispõe sobre o Estatuto da Magistratura do Estado de Santa Catarina e adota outras providências.

Art. 15. Além do subsídio, poderão ser outorgadas aos Magistrados as seguintes vantagens:

 

I – de caráter indenizatório:

(…).

 

c) auxílio-moradia;

(…)

 

§ 1º A aplicação das alíneas c e f do inciso I deste artigo não poderá exceder a dez por cento do respectivo subsídio.

 

  1. É importante essa afirmação, para que fique que o exercício do direito ao auxílio moradia, como concretização do direito fundamental à moradia do magistrado catarinense, é há mais de 30 anos regrado em solo catarinense. E sempre foi positivado e concedido de forma racional, escorreita e transparente, como transparece na conclusão do voto do Conselheiro Mairan Maia!

 

 

V – necessidade de atualizar o auxílio-moradia com o seu conteúdo e extensão adequados À loman e à constituição sem retrocessos regulatórios fragilizadores da independência econômica da magistratura catarinense e brasileira

 

 

  1. O entendimento deste colendo Conselho, por ora delineado nos votos dos eminentes Conselheiros Mairan Maia e Rui Stoco, data máxima vênia, precisa, pro futuro, se conformar ao entendimento que desenha no STF sobre o tema do auxílio-moradia de magistrados.

 

  1. E, com o devido respeito, precisa ampliar seu foco para proteger, com mais efetividade e eficácia, o direito fundamental à moradia do magistrado estadual. O valor da vantagem indenizatória do auxílio moradia deve cobrir não só o singelo pagamento de aluguel, mas os valores e despesas de aquisição do imóvel de moradia do Juiz, quando o imóvel se situar na cidade sede do fórum de justiça; deve, além disso, pressupor a complexidade dos custos com a moradia, na realidade sócio-econômica e urbanística de nossas cidades e segundo a realidade federativa do Brasil, atendendo não só a necessidade do magistrado, mas de sua família, conforme mais ou menos o dito no parágrafo 22 deste memorial

 

  1. Às conclusões do voto do Conselheiro Mairan Maia postas para o julgamento de legalidade do caso concreto, esta entidade associativa nada tem a opor.

 

  1. Esse arrazoado pretendeu, além de defender os magistrados catarinenses, trazer elementos para o debate ao justo estabelecimento do auxílio-moradia em bases regulatórias que prestigiem a máxima efetividade do direito fundamental à moradia dos magistrados no Brasil.

 

Brasília, DF, 19 de abril de 2010.

Ruy Samuel Espíndola

OAB/SC 9189

 

 



[1] Ver Sérgio Sérvulo da Cunha, “Direito à Moradia”, Revista de Informação Legislativa, Brasília, Senado Federal, a. 32, n. 127, jul./set. 1995. Também Ingo Wolfgang Sarlet, “O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia”, Revista Brasileira de Direito PúblicoRBDP, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, p. 65-119, jul./set. 2003; Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, “O Direito Constitucional à Moradia e os Efeitos da Emenda Constitucional n. 26/2000”, Revista de Direitos Difusos, volume 02, ADCOAS-IBAP, ago./2000, p. 201/203; Marga Barth Tessler, “Direito à Moradia”, Revista do Tribunal Regional Federal Quarta Região, Porto Alegre, O Tribunal, a. 11, n. 38, p. 15-206, 2000; Rui Geraldo Camargo Viana, “O Direito à Moradia”, Revista de Direito Privado, São Paulo, RT, n. 2, abr./jun. 2000, p. 09/16.

 

[2] Nossa afirmação se apóia nas seguintes leituras: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. 300 p.; BARCELLOS, Ana Paula. “A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios.” In: LEITE, George Salomão (org.) Dos Princípios Constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. 429 p. p. 101-135; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina.

 

[3] A idéia de concretização legislativa e administrativa da Constituição é descrita na seguinte obra:  Ruy Samuel Espíndola. Conceito de Princípios Constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

[4] Para essas diferentes facetas do direito à moradia, ver o texto de Ingo Sarlet referido na primeira nota de rodapé.

 

[5] As categorias “domínio e programa da norma constitucional” são retiradas da obra de Gomes Canotilho, referida na segunda nota de rodapé.

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