Guia AMC – parte I
 
 

Acolhimento

Oito perguntas e respostas para entender o que leva muitas crianças para casas de acolhimento e por que algumas delas acabam encaminhadas para novas famílias em processos de adoção. 

O que você vai ler aqui:
Quer detalhes sobre processos de adoção?

Como esses casos chegam à Justiça?

Denúncias de situações de negligência familiar em relação a crianças e adolescentes podem ser feitas por qualquer pessoa, mas em geral, têm origem nas escolas, como aponta a Juíza Surami Juliana dos Santos Heerdt, que atua na Vara da Infância e Juventude em Chapecó. “Muitas denúncias chegam às polícias, ao Ministério Público ou ao Conselho Tutelar após uma observação mais efetiva do professor ou da direção”, explica.  

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os motivos mais recorrentes para perda do poder familiar foram, em 2020: negligência, abandono pelos pais ou responsáveis, conflitos no ambiente familiar, devolução por tentativa de colocação familiar mal sucedida, situação de rua, pais ou responsáveis dependentes químicos ou alcoolistas, abuso sexual/suspeita de abuso sexual e abuso físico ou psicológico contra criança ou adolescente.  

A Juíza Liliane Midori Yshiba Michels, que atua em São Bento do Sul, relata que as mais diversas realidades chegam ao gabinete do Juiz. Um caso que marcou a Magistrada foi de uma mãe que vendia imagens da filha para pornografia infantil. “Precisamos, no dia a dia à frente da Vara da Infância e Juventude, estar preparados para lidar com todos os tipos de situação. Umas que nos chocam, mas outras que nos dão esperança e nos fazem acreditar naquele núcleo familiar”, relata a Juíza.  

Diversos problemas familiares chegam diariamente ao gabinete da Juíza Surami, mas ela destaca aqueles que envolvem violência contra meninas. “Já julguei alguns processos onde a mãe oferecia a criança ao marido. Não foi um, não foram dois, mas muitos casos em que há uma conivência da mãe diante da percepção de que a filha está sofrendo algum tipo de abuso”, relata.  

Outra situação comum envolve pais dependentes químicos que não conseguem se desvincular do vício mesmo depois de receber auxílio médico e psicológico. Cada caso que chega para a análise dos Magistrados é analisado de forma única e individual, para que seja encontrada a melhor solução possível dentro das possibilidades da família.  

Um exemplo pode ajudar a entender a situação na prática: o Conselho Tutelar recebe uma denúncia que acusa um pai e uma mãe, usuários de drogas, que colocam os filhos em situação vulnerável, sem ir à escola e sem condições de alimentação e higiene. Nesse caso, a família é encaminhada para atendimento psicológico, social e de saúde, inclusive com encaminhamento dos pais para internação e uso de medicamentos, se necessário. Se não houver efetividade nesse primeiro atendimento, o Ministério Público inicia um processo judicial, solicitando uma medida de proteção para a criança envolvida.  

“Muitas vezes, apenas um atendimento psicológico para a família já faz tudo voltar à normalidade. Então não tem motivo para tirar a criança ou adolescente da família e encaminhar para a instituição de acolhimento”, explica o diretor do Departamento da Infância e Juventude da Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC), Juiz Raphael Mendes Barbosa. Apenas quando o caso não é resolvido via Conselho Tutelar, ele acaba com um processo no Poder Judiciário. 

 

Por que tantas crianças estão em situação de acolhimento?

Quando começa o processo judicial para a medida de proteção, o Juiz determina que a criança seja encaminhada temporariamente para os cuidados de um familiar próximo, enquanto tenta-se resolver a situação com os pais. Caso não haja família biológica que possa garantir os direitos da criança neste período, ela é encaminhada para uma instituição de acolhimento.  As medidas protetivas têm duração de seis meses a um ano. Durante este período, o Magistrado aciona as instituições responsáveis para que atuem na correção dos problemas que levaram a família a tal situação.  

Seguindo o exemplo do tópico anterior: os pais precisam superar a dependência química para que sejam capazes de cuidar adequadamente dos filhos. Então, são encaminhados para internação em um centro de recuperação, onde receberão tratamento médico e psicológico. Enquanto isso, os filhos ficam em uma casa de acolhimento.  

A Juíza Surami explica que o objetivo maior, durante o período de proteção, é verificar a chance da criança voltar para família. “Essa é uma fase de transição onde o poder público vai trabalhar com a família para que a criança possa voltar o quanto antes.” Procura-se, prioritariamente, que a criança seja acolhida na casa de um familiar capaz de assisti-la neste período, para que os vínculos com a família biológica não sejam prejudicados. A criança será acolhida em uma instituição apenas se não houver nenhuma opção no núcleo familiar.  

Hoje, cerca de 1500 crianças e adolescentes estão em casas de acolhimento em Santa Catarina, 80% delas em situação temporária, por medida de proteção, aguardando a solução do problema familiar para que possam retomar a convivência com os pais.  

E se os problemas da família continuarem?

Se o trabalho feito com a família não apresentar resultados, o Ministério Público dá início a um processo de destituição do poder familiar. Neste caso, busca-se, primeiramente, um familiar próximo que tenha condições de assumir a guarda da criança. Se não houver, ela pode ser encaminhada para uma instituição de acolhimento ou para uma família acolhedora até que a sentença de destituição do poder familiar seja proferida e ela possa ser encaminhada para adoção. 

A Juíza Surami reforça que a situação de abrigamento não terminará, necessariamente, com um processo de adoção.

Em Itajaí, onde atua o Juiz Fernando Machado Carboni, 19 crianças estão no abrigo da cidade e apenas uma delas aguarda uma família adotiva. “O encaminhamento para uma casa de acolhimento é uma medida drástica, assim como a destituição do poder familiar”, explica o Juiz. 

Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, desde 2020, mais de 2 mil crianças que receberam medidas protetivas retornaram ao núcleo biológico após o período de acolhimento em Santa Catarina. Em outros 883 casos no ano de 2020, as famílias não foram capazes de garantir os direitos das crianças e elas foram encaminhadas para adoção. 

  

| Veja aqui: Relatório Primeira Infância do Conselho Nacional de Justiça de 2022.  


É importante destacar que as destituições do poder familiar ocorrem apenas quando ambos, pai e mãe, são incapazes de garantir os direitos da criança. Quando apenas um dos genitores apresenta negligência em relação ao menor, o caso é encaminhado para a Vara da Infância e Juventude e busca-se, então, uma mudança na guarda concedida sob a criança. 

O Juiz Fernando Carboni lembra que as destituições do poder familiar podem ocorrer, inclusive, com pais adotantes. “Caso uma criança seja adotada, ela tem as mesmas condições de um filho biológico. Ele pode voltar ao acolhimento por motivos como abandono, negligência, maus tratos, violência e uso de drogas pela família”, explica.  

O que é considerado na decisão do juiz em casos de destituição do poder familiar?

As provas apresentadas no processo para embasar a decisão do Juiz pelo deferimento, ou não, da perda do poder familiar, são fundamentais. Podem ajudar a fundamentar o processo os relatórios emitidos pelo Conselho Tutelar, pelo Centro de Referência de Assistência Social, pelas Unidades de Saúde e pelo Ministério Público, além dos depoimentos colhidos em audiências durante todo o processo. “A resposta para a destituição, ou não, do poder familiar vai depender desses documentos, que podem comprovar uma mudança de comportamento na família, por exemplo”, explica Surami. 

O trabalho é feito em rede, com diversos agentes envolvidos para garantir que a criança tenha seus direitos preservados. O Juiz Raphael acredita que a rede municipal precisa ser muito capacitada, pois é a porta de entrada para casos como esses. “Quanto mais eficiente for esse primeiro contato, menos problemas podem ocorrer no acompanhamento das crianças e das famílias”, explica. O trabalho realizado pelos conselheiros tutelares e pelas assistentes sociais, para o Juiz, é fundamental. “É com base nesses relatórios e depoimentos que conseguimos entender a situação e atuar com eficiência para proteger as vítimas envolvidas”, reforça.  

 

Vulnerabilidade social é um fator avaliado em casos de destituição do poder familiar?

A vulnerabilidade social pode ser uma das causas que levam a família a ser acompanhada pelo poder público, mas ela não é, de acordo com os Juízes, motivo único para que os pais percam a guarda e o poder sob os filhos.  

Surami explica que o Magistrado precisa considerar as diferentes realidades sociais na hora de julgar os processos. “Não podemos buscar um mundo ideal e perfeito, porque isso não existe nem em uma família com condições financeiras e nem em uma família humilde. Então nós não podemos fazer um julgamento do que acreditamos ser ideal a partir da nossa vida, mas sim dentro das condições daquela pessoa e daquela família. Temos que ter a sensibilidade de pensar: o que essa criança pode ter junto dessa família? Qual é o limite que essa família pode oferecer de dignidade para essa criança?”, explica.  

Existem princípios básicos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que devem ser seguidos pelos pais. Higiene, acesso à educação e ao lazer e proteção contra violência psicológica e física são alguns exemplos. Por isso, Surami acredita que orientar as equipes que atuam nesses processos é um desafio. “Precisamos conscientizar os profissionais que estão na linha de frente de que o acolhimento não é algo vulgar, de que não basta que a família seja humilde e vulnerável. Temos que ter muito cuidado. O preparo de todos os profissionais envolvidos é essencial”, argumenta.  

Se o poder familiar for suspenso, a criança será adotada?

Existe uma diferença entre suspensão e perda/destituição do poder familiar.  

A suspensão do poder familiar é uma restrição no exercício da função dos pais, estabelecida por decisão judicial, que dura o tempo necessário de acordo com os interesses do filho menor. Nestes casos, a criança fica sob medida de proteção com família ou instituição acolhedora, mas isso não significa que vínculos com os pais serão cortados. Ao contrário, busca-se preferencialmente que o acolhimento temporário ocorra em casas de familiares e que, quando possível, seja mantida uma rotina de visitas dos pais. “A suspensão pode ser revista e modificada desde que haja mudança na situação e nos fatos que a provocaram”, explica o Juiz Raphael Mendes Barbosa. 

Já a destituição do poder familiar é a forma mais grave de punição aplicada aos pais porque tem caráter permanente. A Juíza Surami explica: “De modo geral, quando a sentença é proferida, se perde os vínculos e assim a criança pode ser encaminhada a uma adoção”. O Juiz Fernando lembra que, como a destituição é uma medida drástica, ela deve envolver várias provas e relatórios para que o Magistrado possa embasar sua decisão.

As sentenças de destituição, proferidas por Juízes em primeiro grau, ainda permitem recursos para reavaliação pelo Tribunal de Justiça ou pelos Tribunais Superiores 

 

Existe um prazo para julgamento de casos como esses?

Passado o tempo da medida protetiva, e verificado que o problema inicial da família não foi resolvido, inicia-se, pelo Ministério Público, um processo de destituição do poder familiar. A partir de então, o Magistrado responsável tem um prazo máximo de 120 dias para proferir uma sentença, conforme previsto no artigo 163 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de acordo com recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

O prazo exigido dos Magistrados pelo ECA considera que, no momento em que a ação de destituição é ajuizada, todas as tratativas anteriores já foram esgotadas, e que, portanto, são  suficientes 120 dias para proferir a sentença. O Juiz Raphael explica: 

A Juíza Surami concorda que nenhuma criança deve permanecer abrigada num “limbo jurídico” à espera de uma decisão, mas ela acredita também que em muitos casos o prazo é curto, principalmente porque envolve sofrimento da criança, que ainda possui ligação com a mãe. “Existe uma pressão muito grande do Conselho Nacional da Justiça para que a gente julgue rapidamente. Eu acho que nós precisamos rediscutir esse tema para entender qual o prazo razoável pra uma destituição do poder familiar”, argumenta.  

O prazo determinado, conta a Juíza Liliane,  é eventualmente extrapolado, mas isso ocorre para a proteção da criança, quando é possível que a rede de acolhimento ainda trabalhe para a reintegração à família, seja ela natural ou extensa, já que essa é a prioridade quando se trata de Infância e Juventude. “Em determinados casos, se eu tivesse seguido o prazo legal, as crianças teriam sido destituídas. Com o tempo extra, consegui trabalhar melhor as famílias e hoje elas estão bem no seu lar biológico”, conta. 

A Juíza Simone Faria Locks, que atuou por sete anos na Vara da Infância e Juventude de Blumenau, explica que a criança não pode ficar institucionalizada por longo período esperando que o pai decida se reestruturar. “Se a família, mesmo acompanhada e cuidada por toda a rede de proteção, não apresentar mudanças e progressos depois de um ano, devemos agir para mudar essa realidade. Para a criança, cada dia a mais no acolhimento institucional é significado de sofrimento e perda de oportunidade de talvez ser adotado para ter vida familiar e comunitária dignas”, justifica.  

Quais desafios o Juiz enfrenta nesses processos?

O papel da Magistratura, de acordo com Fernando, é proporcionar que as crianças e os adolescentes, tenham uma família digna, que lhe assegure seus direitos. “Vamos sempre buscar que se mantenha a família natural, mas se os pais não podem proporcionar isso, vamos procurar uma família extensa e depois uma família adotiva. Mas o objetivo do juiz precisa ser sempre proporcionar uma família que assegure os direitos da criança.” 

Outro desafio vem da opinião pública a respeito da atuação de Magistrados em ações de destituição. Para a Juíza Liliane, tal repercussão midiática é sempre tendenciosa, pois apenas um dos lados da história é ouvido.

Para além dos casos que ganham repercussão midiática, o próprio peso da decisão de uma destituição familiar muitas vezes desgasta psicologicamente os Magistrados. “Mesmo que uma criança seja adotada e esteja feliz com a nova família, de certa forma esse caso foi uma derrota, pois não conseguimos mantê-la na família de origem”, aponta Surami. “As pessoas não podem ignorar a dificuldade que é julgar um processo como esse. Os Magistrados sempre levam consigo suas decisões, mas essas [de destituição] nos marcam muito mais”, finaliza.  

Depois de proferida a sentença da destituição do poder familiar, começa o novo caminho da preparação para a adoção.  

 

Entenda, na segunda parte do guia, todos os detalhes envolvidos nestes processos. 

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Uma história inspiradora demonstra o complexo caminho que antecede a formação de uma nova família pelos laços da adoção. 

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