O paradoxo brasileiro, artigo da professora Samantha Buglione, publicado no jornal A Notícia, em 11/12

O paradoxo brasileiro

Samantha Buglione*

Para a moral brasileira, o processo do mensalão teve um efeito positivo. É como se nossa prática da corrupção tivesse limites, algum limite ao menos. O Poder Judiciário mostra-se, apesar dos pesares, um bastião fundamental para a democracia. Paradoxalmente, nos últimos anos há sucessivos procedimentos para acabar com isso. Desde os anos 1990, uma pesquisa da Comissão Interamericana de Direitos Humanos mostrou que entre os poderes de Estado, na America Latina, o Judiciário é o menos corrupto e o mais efetivo. É, da mesma época, uma pesquisa do Banco Mundial indicando reformas para o Poder Judiciário. Entre elas está a súmula vinculante, o fim da vitaliciedade e da inamovibilidade.

Se por um lado o Poder Judiciário, ao menos no Brasil, consegue frear a pouca vergonha, por outro, essa mesma pouca vergonha tenta frear o Poder Judiciário, seja acabando com a carreira do ponto de vista financeiro, seja desestruturando-a do ponto de vista moral. Hoje, é possível encontrar técnicos com salários maiores que os de juízes. No último concurso para juiz federal da região Sul, apenas 2.800 inscritos compareceram; é o menor número nos últimos dez anos. Afinal, quem vai querer tanta responsabilidade com tão poucas garantias? Em compensação, no último concurso para cartório em Santa Catarina, foram aproximadamente seis mil inscritos. É a vitória da burocracia sobre a justiça. Não são raros os casos de juízes com risco de vida e ameaças. Afinal, é o nome deles na ação da moeda verde, na ação contra traficantes, no processo que impede que grandes corporações se instalem e destruam o meio ambiente. São pessoas não gratas para o corrupto e para quem quer ganhar dinheiro fora das regras do jogo. Afinal, são eles que tentam, em alguma medida, segurar as regras do jogo.

Agora, uma proposta de emenda constitucional, de autoria de Ideli Salvati, propõe de maneira indireta o fim da vitaliciedade. Essa é uma das poucas garantias necessárias para quem dá a cara para bater. Imagine se haverá alguém disposto a fazer o que deve ser feito sem o mínimo de segurança ou remuneração adequada.

Sei que muitos irão dizer que todos devem ganhar igual, que não tem cabimento um juiz ganhar tão mais que um motorista. Mas, aviso, em vários órgãos públicos o motorista ganha mais. E, para além disso, esse discursinho igualitarista é fraudulento. Nunca se viu tanto milionário quando da queda dos regimes comunistas. O igualitarismo, nestes termos, é o oposto da justiça. Para quem ainda insiste em defender práticas como esta, sem critérios como esforço, responsabilidade e respeito às diferenças, eu sugiro a leitura urgente de John Rawls.

*Doutora em Ciências humanas e professora

 

 

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