Negada federalização do julgamento do assassinato da irmã Dorothy Stang

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou, por unanimidade, o deslocamento da competência da investigação e julgamento do caso do assassinato da irmã Dorothy Stang da Justiça Estadual do Pará para a Justiça Federal. Os ministros consideraram ausente um dos requisitos para a incidência do dispositivo recém-criado pela emenda constitucional da reforma do Judiciário: a inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico.

O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, em sua primeira sustentação na Terceira Seção do STJ, afirmou que o crime deveria ser federalizado em razão de sua brutalidade e da incapacidade do Estado de defender a vida da missionária, apesar de manifestações pedindo sua proteção feitas reiteradamente, mesmo pela Justiça estadual.

Fonteles ressaltou a contradição entre o manifesto do presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJ-PA), que afirmou tratar-se de ”brutal assassinato da missionária” e o fato de a primeira instância daquela mesma Justiça ter recebido denúncia contra Dorothy como mandante de uma quadrilha de assassinatos, por fornecer alimentos a supostos criminosos.

O procurador do Estado do Pará Aluízio Campos defendeu a manutenção da competência da Justiça estadual sobre o caso. Campos destacou que não se estavam avaliando as qualidades da irmã ou a brutalidade do crime, mas a incapacidade e inércia da Justiça e da polícia locais para lidar com o caso. Afirmou que todos os acusados já estão presos e que o júri popular contra os acusados está previsto para agosto deste ano.

Sustentou ainda o perigo na abertura de um precedente de federalização e eventualmente internacionalização de tais casos contra os direitos humanos, a instauração de um juízo de exceção pela violação do princípio do juiz natural. Campos lembrou também que Dorothy Stang fora acusada de porte ilegal de arma e auxílio aos grupos criminosos.

Campos ressaltou que não há nenhum pedido de intervenção federal contra o Estado do Pará, que resgata seus precatórios e cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal em dia, o que demonstraria que o Estado não é uma ”terra sem lei”. O Pará, afirmou, tem todo o aparato para punir os assassinos.

O ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do caso, inicialmente afastou as questões preliminares contra o pedido de deslocamento de competência pedido pelo Procurador-Geral da República. Para o ministro, não há necessidade de definição de quais seriam os crimes que incorreriam em ”grave violação dos direitos humanos”, já que todo homicídio viola o direito maior da pessoa, qual seja, à vida.

Ao mesmo tempo, não seria razoável admitir que todos os crimes que tratem de violação dos direitos humanos sejam deslocados para a Justiça Federal, sob pena de inviabilizá-la, esvaziando, ao mesmo tempo, a Justiça estadual. O próprio constituinte, ao não defini-los, optou por não restringir a alguns crimes os de ”grave violação aos direitos humanos”.

Também não haveria incompatibilidade entre o dispositivo do incidente de deslocamento de competência e a Constituição Federal ou o Código de Processo Penal. O paralelo seria o do desaforamento, já existente no ordenamento legal. O incidente, uma mera inovação processual, teria ainda aplicação imediata, não exigindo regulamentação específica (a chamada eficiência contida).

No mérito, o relator listou as medidas adotadas pela Justiça Estadual e as autoridades locais para reagir de forma eficaz ao crime em questão. A investigação e a denúncia foram concluídas em tempo recorde, manifestando a ausência do terceiro requisito autorizador da federalização: a incapacidade do Estado em cuidar do crime por descaso, desinteresse, ausência de vontade política e a falta de condições pessoais ou materiais, entre outras.

Este requisito seria indispensável para a incidência do deslocamento, ao lado dos outros dois: a grave violação dos direitos humanos e a garantia do cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais. ”Tais requisitos – os três – hão de ser cumulativos, o que parece ser de senso comum, pois do contrário haveria indevida, inconstitucional, abusiva invasão de competência estadual por parte da União Federal, ferindo o Estado de Direito e a própria federação, o que certamente ninguém deseja, sabendo-se, outrossim, que o fortalecimento das instituições públicas – todas, em todas as esferas – deve ser a tônica, fiel àquela asserção segundo a qual, figuradamente, ´nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco´”, afirmou o ministro Arnaldo Esteves Lima.

”O feito, aliás, já se encontra em fase adiantada estando os denunciados presos e prestes a serem submetidos a seu juízo natural, qual seja, o Tribunal do Júri estadual”, informa o relator. ”Ressalte-se que nosso Poder Judiciário, conforme antiga e constante doutrina, é nacional”, concluiu, citando voto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluso na ADIn 3.337-1. O voto do ministro Cezar Peluso afirma que o Poder Judiciário não é federal, nem estadual, mas eminentemente nacional, quer se aplique em jurisdições estaduais, superiores, inferiores, cíveis ou criminais.

O ministro destacou que o assassinato da missionária Dorothy Stang é trágico e covarde, e merece ”a mais absoluta repulsa de toda a sociedade”. A apuração e responsabilização dos culpados devem ser, dentro da lei, rigorosos, afirmou. Mas, nas circunstâncias específicas, não há razão para afastar o procedimento criminal em curso de seu trâmite normal, perante a Justiça Estadual, que ”com certeza, cumprirá, como vem fazendo, o seu indeclinável dever funcional, não só perante a sociedade local, estadual, nacional, mas, igualmente, internacional”.

O deferimento do pedido de deslocamento de competência poderia, ainda, tumultuar o andamento do processo criminal e adiar a solução do processo, utilizando-se o instrumento criado pela reforma do Judiciário contra sua própria finalidade, que é a de combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação dos direitos humanos, ressaltou o ministro Arnaldo Esteves de Lima. Também votaram pela permanência do caso na Justiça Estadual os ministros José Arnaldo da Fonseca, Nilson Naves, Gilson Dipp, Paulo Gallotti, Laurita Vaz, Paulo Medina e Hélio Quaglia Barbosa.

Fonte: STJ